ENTRE A CLAUSURA E O FORA: POLÍTICA DO CUIDADO COM OS DITOS DESVIANTES.

17/08/2011 00:00

Autores: Prof. Dr. José Sterza Justo e Kauana Barreiro Anglés

 RESUMO

            A política de cuidado tem se intensificado no processo de gestão dos desviantes da norma. Este artigo busca encontros possíveis entre estes “excluídos”, no caso a loucura e o nomadismo, a fim de problematizar essas ações. Os loucos e os andarilhos já viveram entre os mesmos meios, mas a incidência de discursos diversos fez com que um fosse capturado inicialmente, nos Hospitais Gerais e posteriormente nos Hospitais Psiquiátricos, ao passo que o outro continuou sua resistência dromológica, sofrendo atualmente a captura por outras vias, que se destinam a realizarem o cuidado em forma de condição e não situação. A grande questão que circunda a providência, não é a crítica em relação à assistência, mas ao excesso de saber/poder que se concentra nas mãos daqueles que se prestam a essa função.

 

O esquizo está presente e ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem.[...] O nômade, a exemplo do esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da sua própria desterritorialização um território subjetivo

(PELBART, 2003, p. 20).

 

 

A necessidade de se falar do cuidado nasce do enfrentamento dessas práticas enquanto um plano de política com preceitos fundados mais na moralidade que na ética, mais no assistencialismo que na emancipação. Por isso, torna-se considerável problematizar a gestão de grupos assujeitados que organizações estatais juntamente com discursos paradigmáticos da sociedade e da ciência empregam no sentido de homologar essas ações beligerantes

As vivências de campo entre pesquisas realizadas anteriormente, bem como as leituras bibliográficas proporcionaram inquietações para iniciar discussões acerca da correlação dos temas e relações existentes entre os ditos desviantes, conjuntamente à ideologia dominante e o modo de produção capitalista.

Estes dois modos de habitar a cidade, em questão: o “louco”, “doente mental”; e o “morador de rua” ou “andarilho” causaram certo incômodo à classe social ascendente do século XIX, quando compartilhavam dos mesmos espaços, as ruas das urbes que emergiam em toda sua potência econômica. Com a ampliação e desenvolvimento do capital, este incômodo se perpetua e se amplia, tornando-se um fenômeno mais complexo através dos tempos.

Os modos “desviantes” que incomodaram a sociedade “normal”, aqueles à margem da sociedade, são modos de habitar que, de alguma forma ou em algum momento, se distanciaram da norma e de maneira muito peculiar a contestaram. Para explicitar o que seria a norma aqui referida, podemos recorrer a Michel Foucault (1999) e Basaglia (2005) e suas definições:

[...] O elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à população, que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a “norma”. A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar (FOUCAULT, 1999. p. 302).

 

            Para Franco Basaglia (2005), sobre o tema:

[...] o complexo de regras que definem os valores de uma determinada sociedade em relação ao tipo de crenças, organização social, nível econômico e desenvolvimento tecnológico-industrial que a caracterizam estabelece as barreiras que lhe delimitam o terreno normativo. Trata-se, de um conjunto de valores relativos, que ganham peso e significado absolutos no momento em que são infringidos (BASAGLIA (1970) 2005. p. 165).

 

Estes demonstram que apesar da força realizada para capturar e englobar o maior número de assujeitados em uma curva matemática; há aqueles que se desviam, e para eles são criados outros aparelhos de Estado que os englobam em outros campos, os ditos excluídos. Castel (2005) afirma que até o processo de descoletivização é da ordem do coletivo.

Tomando o termo exclusão como analisador, pode-se chegar à determinação prévia de espaços de arregimentação de grupos que se vistos como cidadãos provocariam uma mudança intensa em padrões e conceitos morais, econômicos,...ou seja, melhor deslocar para preservar os ditos “normais”.

Entre as discussões das duas pesquisas, foram notados momentos em que tanto a loucura quanto a população de rua se movimentaram concomitantemente, ao longo da história, sendo vistas em alguns momentos parceiras de caminhada, tendo já circulados juntos, como exemplifica Castel (1998, p. 56): é claro que já existem andarilhos e pessoas isoladas. Representam, mesmo desde antes do ano mil, uma constante da paisagem.” No entanto, as duas populações aqui referidas se desvincularam, em suas histórias, pelo atravessamento de discursos distintos: um possibilitando a perpetuação da nomadização e habitação do Fora, e outro empreendendo a captura no sentido da sedentarização.

 

Nomadismo como desvio: Desterritorialização através do espaço territorial

Justo (2005) afirma que, na verdade, “não se trata de uma população marginal ou excluída, mas sim de uma população sobre a qual incidem radicalmente as injunções da contemporaneidade: a desterritorialização, o abrandamento de filiações e vínculos psicossociais”.

Se o nômade pode ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...). Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território (DELEUZE &GUATTARI, 1997, p.44).

 

Esse modo nômade é uma forma dromológica de resistência à normalidade vigente cerceadora.  A política do cuidado, braço da biopolítica, é emblemática como a sociedade enxerga as pessoas que recaem sobre si o discurso da exclusão. Estes denunciam, em seu modo de vida, os problemas fundamentais da vida na metrópole e da sociedade contemporânea. São analisadores da cidade, expõem cruelmente as tendências em curso, são visto como forasteiros, e sendo assim, não conhecem e nem compactuam com os costumes da metrópole. Mostram também as estratégias de resistência e de afirmação da vida.

Esses resistentes possuem inúmeras classes, com denominações distintas: moradores de rua, mendigos, trecheiros, andarilhos, cada qual com sua particularidade; todos esses nomes são utilizados para distinguir as pessoas que utilizam a rua como forma de abrigo, temporário ou permanente. Aqueles que classificam essas pessoas utilizam-se de vários verbetes, mas normalmente a visão é apenas uma: a do vagabundo. Assim, como explicita Castel (2005), a figura do vagabundo é depreciada desde as sociedades pré-industriais, pois era a personificação do errante, de uma pessoa que não participava das normas ditadas pelo grupo e era vista como perigosa.

O movimentar-se pelo espaço caracteriza questões muito pertinentes e de resistência ao modo sedentário, capitalístico e predatório em que estamos inseridos. O tempo do movimento não é subjugado pelo horário normatizado das refeições e sono, não respeita normas burguesas de higiene e “bom tom”; as necessidades do espaço físico e do corpo, normalmente ditam as ações. O tempo é aiôn, o instante ali existe, a busca pela comida nasce com a fome e não com o encontro dos ponteiros de cronos,  tempo da captura.

Os que não se apresentam nos círculos costumeiros de socialização e se mostram inútil para a lógica capitalística, ganham seu rótulo de “sujeito desviante”, “perigoso”, a quem os “cidadãos de bem” devem temer, contribuindo, assim, para aumentar o sentimento de insegurança nas cidades, como relata Bauman (2005, p.56).

Para amenizar essa sensação de temor, para realinhar essas alteridades, para oferecer a possibilidade de resgatarem pessoalmente seus pecados é que a salvação dessa população é oferecida na forma de centros de assistência, as quais seguem pelos serviços de alimentação, assistência social, asseio e salvação religiosa.

Mais propriamente na cidade de São Paulo, contando atualmente com 16 mil pessoas em situação de rua, o Estado providencia albergues e casas de transição que prestam assistência social e alimento àqueles que procuram, e aos que não procuram - os veículos de caridade levam alimento nas noites frias nas principais praças, como a região da Sé e Brás[1].

Esses centros caracterizam como territórios de transição, onde a população restabelece, por determinação, laços espaço-temporais e torna-se propósito dos mais diversos discursos, principalmente o assistencialista e o religioso. A maioria desses espaços são uniões do Estado com algum sistema religioso, conferindo ao cuidado um detalhe muito peculiar: a ação permeada pelo platonismo das massas- técnica de poder pastoral (FOUCAULT, 1995, p 236)- culpabilizador e docilizador.

Primeiro realiza-se um processo de totalização identitária ou normatizadora, dizendo que todos são seres humanos e que a comunidade em geral é dócil e acredita que as mudanças propostas pelos projetos sociais são importantes, donde a violência ou outras formas de embate social – como os seqüestros, os assaltos, enfim as manifestações não muito pacíficas – são exceções à norma (ZANETTI, 2007, p. 24).

 

Loucura como desvio: desterritorialização através do espaço psíquico

Foucault (1991) nos conta que, ao final do séc. XV e durante todo o renascimento,

a loucura é no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comuns, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar[...]Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiência (FOUCAULT, 1991, p. 77).

 

            Segundo Amarante (2007), o hospital, em sua origem, não era uma instituição médica, mas sim uma instituição de caridade, nos anos da Idade Média. Oferecia abrigo, alimentação e auxílio religioso a todos os pobres, miseráveis, mendigos desabrigados e doentes, ou seja, estas categorias todas de desvalidos se misturavam um pouco, pois, fácil era de se deduzir que um miserável mendigo fosse também doente. Em latim, ‘hospital’ significa hospedagem, hospedaria, hospitalidade (AMARANTE, 2007. p. 22). Nesta época, encontravam-se “loucos” e “mendigos” na mesma condição de tratamento moral pelas instituições de caridade, aquelas que nutriam “pena” ou “dó” por seus internos, e que tinham uma “missão” para com a sociedade de fazer o “bem”.

Se a loucura no século XVII está como que dessacralizada é de início porque a miséria sofreu essa espécie de degradação que a faz ser encarada agora apenas no horizonte da moral. A loucura só terá hospitalidade doravante entre os muros do hospital, ao lado de todos os pobres. É lá que a encontraremos ainda ao final do século XVIII. Com respeito a ela, nasceu uma nova sensibilidade: não mais religiosa, porém moral. Se o louco aparecia de modo familiar na paisagem humana da Idade Média, era como que vindo de um outro mundo. Agora, ele vai destacar-se sobre um fundo formado por um problema de "polícia", referente à ordem dos indivíduos na cidade (FOUCAULT, 1978, p. 72).

 

            Após o Renascimento, devemos ressaltar um importante acontecimento que marcou a história da humanidade, inclusive a história da loucura: a Revolução Francesa. Momento histórico de várias transformações de ordem econômica, social e política de repercussão mundial. Neste cenário, destaca-se o nome de Philippe Pinel, figura importante do Alienismo, médico considerado o pai da Psiquiatria. Com ele, o hospital vai gradualmente, por meio de um longo processo, se transformar na instituição médica por excelência (AMARANTE, 2007, p. 21-22).

Até o momento desta transformação, a loucura e os loucos tinham múltiplos significados – de demônios a endeusados, de comédia e tragédia, de erro e verdade. Múltiplos e plurais eram também os seus lugares e espaços: ruas e guetos, matas e florestas, igrejas e hospitais (AMARANTE, 2007. p. 23).

 

            Os médicos foram atuar nestas instituições com o objetivo de “humanizá-las”, e de torná-las mais coerentes com os novos princípios modernos influenciados pelos ideais da Revolução Francesa. Com o tempo, estas instituições foram transformadas em instituições médicas, já que o médico era o profissional que acumulava o saber sobre as “doenças”, e considerava-se que possuía um olhar diferenciado ao observar os comportamentos “anormais”. De acordo com o agrupamento das informações encontradas a partir destas observações dentro deste “laboratório” da realidade, produziu-se este saber, inédito, no campo das ciências naturais (AMARANTE, 2007, p. 25).

            Este saber vai, então, influenciar a vida das pessoas de dentro e de fora dos manicômios, categorizando as de dentro e criando a ideologia das de fora. O psiquiatra Franco Basaglia, em 1966, já dizia: “De fato, a psiquiatria clássica limitou-se à definição das síndromes em que o doente, arrancado de sua realidade e apartado do contexto social em que vive, vê-se etiquetado, ‘constrangido’ a aderir a uma doença abstrata, simbólica e, enquanto tal, ideológica (BASAGLIA, 2005. p. 35).”

            O psiquiatra italiano, em seus escritos, reunidos de artigos, aulas, palestras, em vários lugares do mundo, para discutir a relação complexa entre os motivos da clausura da loucura, principalmente da sua posterior patologização, e o modo de produção capitalista na sociedade ocidental; utiliza-se, quase que o tempo todo, da “ideologia”. Em um destes escritos, recorre a Jean-Paul Sartre (1948) quando diz que: “as ideologias são liberdade enquanto se fazem; opressão quando estão feitas” (SARTRE, [1948] apud. BASAGLIA, 2005. p. 61). Argumenta o tempo todo como a psiquiatria em seu status de ciência, aliada e cúmplice das formas de controle do modo de produção em sua tarefa de definir e tornar conhecidos e menos perigosos ao sistema os ditos “abnormes”, conseguiu encontrar, de fato, um lugar racionalizado para estas existências reais, de maneira que se reduza a ameaça que representam:

O que se tenta assinalar é o modo pelo qual a psiquiatria tradicional codificou o problema, numa dimensão que mal consegue abarcar, tornando evidente como os “desviantes” são duplamente misfits, isto é, desadaptados tanto na realidade à qual não se ajustam e na qual não encontram lugar, como na ideologia que volta e meia os define. De fato, o termo psicopatia, com o qual eles são hoje etiquetados em nossa cultura psiquiátrica, mostra-se inadequado para englobar um problema que ultrapassa os limites demasiado restritos da ideologia médica. Como os da ideologia sociológica, que tende a encerrar numa nova categoria os comportamentos no limite da norma, impondo-se ao desviante tal como uma roupa demasiado apertada, que lamentavelmente o constrange. (BASAGLIA, 2005. p. 161).

 

                        O que vinha já sinalizado nessas falas denunciantes na década de 1970, possui suas correspondências atuais de controle e de conformação com o capitalismo flexível: são as políticas do cuidado, as quais encontram a sanção do Estado, e podem ser justificadas enquanto um enclausuramento “invisível”, que, por sua vez, não deixa de afirmar a ideologia dominante, em analogia ao momento vivido por Basaglia.

           

Política do cuidado

                       “[...] ele tem o direito de ser alimentado, mas deve aceitar a coação física e moral do internamento

(FOUCAULT, 1978, p.74).”

 

A noção de cuidado é algo imposto desde a época medieval, e possibilita àqueles que praticam a sensação de ganharem mérito, “um bom lugar no céu”, o realizando direta ou indiretamente; assim como se pode exemplificar através dos hospitais, os quais não eram destinados aos doentes, mas sim a pessoas que “demandavam” cuidados. Apenas após a Idade Média é que a patologia ganha foco (BURKE, 2010).

À medida que o cuidado é focado como algo benemérito, seus alvos são vistos como despotencializados, se cuidados pela religião os sujeitos possuem problemas morais, se cuidados pela medicina, o problema torna-se a patologia; colocando os seres humanos em condição de assujeitados, postos em um determinado quadrante do plano.

Esse espaço delimitado nada mais é que uma condição já estipulada previamente pelos agentes de cuidado, referenciando-se a priori como necessitados de assistência, visando à submissão da subjetividade, tratando-os tal qual condição e não como situação.

A grande questão que circunda a questão da providência, não é a crítica em relação à assistência, o que para alguns possa ser validado como algo necessário e de direito, mas ao excesso de saber/poder que se concentra nas mãos daqueles que se prestam a essa função. Neste sentido, a assistência passa a ser assistencialismo, e a rede assistencial transforma-se em minimalizadora de recursos e altamente instrumento de controle social.

 Outra questão também presente se dá através do emprego do nome e da causa do que seria chamado cuidado, ou termos devidamente correspondentes para determinada época e conjuntura, já se travaram grandes guerras e dizimaram-se muitas culturas, ou seja: “de boas intenções, o inferno está cheio”.

Como todo poder preza em se manter no comando, a ajuda atua por mecanismos camuflados, lançando mão de apelos pretensamente morais para consolidar sua hegemonia. Afinal, quem ousa desconfiar daquele que está “ajudando”, seja através de benesses ou do conhecimento científico? Obviamente, para estes tudo é permitido, até esquecer-se do Estado Laico, como se prevê ao constato de inúmeras parcerias entre entidades religiosas e iniciativas estatais; transformando assim, os espaços assistenciais em espaços sagrados e de catequização.

À medida que essa política se preocupa mais com gestar a vida[2] do que preservar da morte, ela pode ser tida como uma biopolítica[3] e por isso controladora. Através do triedro do cuidado: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar; baseado em relações de conhecimento e visibilidade, ou seja, imbuídas de poder, forja-se a noção de ações que possibilitem a emancipação e autopoieses (auto-produção) dos sujeitos.

As práticas de cuidado, neste caso, configuram-se como reverberações de uma biopolítica que visa totalizar em conceitos como “população”, encadear e controlar os corpos que foram docilizados pelas práticas disciplinares, limpando os espaços para que os pagadores de impostos possam utilizar sua metrópole sem incômodos visuais.

Previamente ao evento cultural “Virada Cultural Paulista”, as políticas higienizadoras, no governo Serra, mesclam-se às de cuidado e grandes jatos de água são empunhados para retirar quaisquer resquícios das “malocas” [4] e conseqüentemente seus moradores, realizando assim a “revitalização” (tratando como se o âmago dos grandes centros estivessem mortos se habitados pelos moradores de rua), e conseqüente processo de desvitalização da população que ali reside. Uma verdadeira “limpeza social”; eles limpam as ruas, eles limpam os passeios de gente[5].

Advindo desses fatos, a população de rua tanto do Rio de Janeiro, como São Paulo, entre outras metrópoles que serão palco para os eventos esportivos: Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, sentem-se temerosas em relação a possíveis novas políticas de retirada da população dos centros, com a justificativa de serem levadas para outras cidades ou centros periféricos. Como dejetos humanos devem ser retirados da passagem dos turistas que apreciarão aos grandes espetáculos esportivos.

Essas ações de busca messiânica, assim como o discurso nazi-higienista já foi cinematografado por Sérgio Bianchi no tórpido filme Quanto vale ou é por aquilo? de 2005:

Nós não temos nenhuma culpa pela situação de pobreza que a comunidade se encontra, nós até tentamos ajudar, e pagamos impostos. É o Estado incompetente o verdadeiro responsável pela pobreza de vocês. A sua pobreza não tem relação com a nossa riqueza, como os antigos proletários diziam, vocês devem reclamar com os governantes que vocês democraticamente concordaram em eleger. Nós já fazemos mais do que devemos fazer, ajudamos vocês porque somos bons e solidários, caso contrário, poderíamos matá-los, ou melhor, deixá-los morrer. Na verdade, seria melhor que vocês não estivessem tão perto, isso provoca em nós certa culpa, pois ainda somos bastante cristãos. Mas conseguimos uma boa saída, unir nossa necessidade de torná-los dóceis à possibilidade de fazê-los produtivos e rentáveis. Observando as fraquezas e destrezas do Estado, seus métodos e técnicas no controle de população, descobrimos um meio de retirar vantagem ou até lucro dos problemas sociais. (BIANCHI, 1995 apud ZANETTI, 2007. p.23).

 

A desinstitucionalização pode ser vista também como uma política de cuidado, mas que se inscreve em campos mais abertos, territórios ampliados:

Embora nascida como crítica à aplicação do modelo psiquiátrico, a desinstitucionalização, nessa versão, propicia uma ampliação do território psiquiátrico, isto é, alarga o conceito de doença para o de desvio, mal-estar social, desajustamento, anormalidade. Com isso, produz-se um efeito rebote, pois se criam inúmeros novos serviços, especialidades e técnicas que, em uma palavra, aumentam o número de pessoas assistidas e as possibilidades de intervenção técnica, sem que os resultados terapêuticos sejam correspondentes (AMARANTE, 1996. p. 17).

 

Quando a população de rua não era vista pelos órgãos de censo nacional (IBGE) poderíamos inferir que ela se encontrava quase que totalmente em um estado de exceção, não participando da lei, não possuindo direitos? No entanto, quando este passa a ser visto, e colocado dentro da jurisdição, esse modo de subjetivação “solto” passa a ser encampado, como objeto do cuidado, para ser atravessado pelos discursos, primariamente pelo religioso, salvador, messiânico, ou seja, da ordem da moral, para, posteriormente, pelo psiquiátrico.

O discurso médico, quando atravessou o modo de subjetivação nômade mais caracterizado como “louco”, o apreende em instituições asilares e hospitais gerais, e deixa “escapar” o modo de subjetivação nômade em si. Já o que vemos atualmente é a infeliz tentativa de resgate do discurso médico para com este modo que foi esquecido. Eles agora atravessam, cooptam, capitalizam, através também do discurso da loucura e o da drogadição.

Essa incidência, que atualmente suplanta o nível apenas do discurso e se concretiza em ações, visa desligitimar qualquer resistência ou fala que possa advir de pessoas que integrem quaisquer desses grupos, ou seja: “para viver na rua ou se é louco ou se é drogado”; e por isso “falta-lhes o senhor no coração, há que salvar”, há que salvar para salvar-se enquanto caridoso que se pode ser!

        Ainda que a psiquiatria não tenha mais por objeto a mendicância como forma de desorganização psíquica, suas práticas não impedem de, infelizmente, concluirmos isto, quando o fazem através do tratamento de pessoas que provocam certa “desordem” social (FRANÇA & ZANETTI, 2002, p. 87).

No início dissemos que a psiquiatria em suas práticas e o público leigo em seu discurso ainda relacionam, em alguns casos, a mendicância à loucura. Sendo assim, podemos pensar que a atuação da psiquiatria na cidade possui um claro papel higienista no sentido da organização e controle de certas populações e do espaço urbano. Esses acontecimentos, segundo os entrevistados, causam preconceitos na cidade em relação a eles, pois no plano social vincula-se um conceito de loucura a um bloco de sentido com a mendicância, a errância, promovendo uma indistinção entre esses dois signos culturais com a doença mental. Assim, o CIAPS, que deveria se configurar como um lugar para o tratamento da doença mental acabou se tornando um lugar para aqueles que estão vinculados à marginalidade, a problemas e incômodos sociais (FRANÇA & ZANETTI, 2002. p.90).

 

Aos passos curtos e lentos, um a frente e dois atrás, a loucura reivindica e consegue gradativamente alguma autonomia territorial, sua circulação novamente pela urbe, através de ações de insistentes militantes, na luta por colocar “goela abaixo”, a presença da loucura, levando, para isso, o argumento de que não se pode mais haver preconceito em pleno século XXI- como se isso bastasse para não o haver.

Já os moradores de rua, andarilhos, vêm sendo enclausurados, cooptados, convertidos, nos centros de referência, sendo atravessados por alguns discursos como o religioso e o psiquiátrico, ou seja, passam por fase análoga e anterior à da loucura hoje. Parece-nos que o que resta é inventar formas de burlar este controle, linhas de fuga, criando alternativas éticas nesta mesma condição socioeconômica para que estes modos de existência continuem movimentando-se, desvencilhando-se dessa rede de captura, preservando as singularidades e a possibilidade de recorrem a serviços que compreendam ações político-emancipatória, colocando sempre em xeque os discursos hegemônicos e assistencialistas.

E se conclusão tais questionamentos e problematizações aparentam não oferecer, eis porque em questões sociais quaisquer conclusões também caminham no sentido de totalizações e políticas de massas que não visam atender realmente às particularidades. Situações que são representativas na forma como nossos antecessores enxergavam pontos e como o sistema econômico vigente subjuga outros sistemas a fim de corroborarem com seus interesses.

E novamente, se tais apontamentos esbarram em nossos preceitos de benesse, latejam aí nossos corpos atravessados também pelos preceitos cristãos. Porque ao contrário do que dizem, o Senhor nunca esteve no centro da sociedade- teocêntrismo- e depois se retirou; apenas aqueles que ficavam por trás da imagem crucificada, justificando seus interesses pela dor da cruz, saíram e fundaram outros sistemas para justificarem suas ações, sejam estas econômicas, psiquiátricas ou psicológicas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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 BASAGLIA, F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Org. Paulo Amarante. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

 

BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D`Agua Editores, 2006.

 

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[1] Cleisa Rosa (1994) realizou, em 1992, um recenseamento da população de rua de São Paulo, no período do mandato da ex- prefeita Luíza Erundina; afirmando que o centro da metrópole é escolhido como maior pólo de concentração da população, em virtude de possuir maior possibilidade de obtenção de alimentação e abrigo.

 

[2] “[...] instrumento de uma política de gestão diferencial das populações mais do que o cuidado (CASTEL, 1987, p. 98).”

 

[3] “[...] a vida e seus mecanismos entram nos cálculos explícitos do poder e saber, enquanto estes se tornam agentes de transformação de vida (PELBART, 2003, p.58).”

[4] Malocas é a denominação que traduz as moradias de rua, feitas de papelão, possivelmente advindo desse termo outra denominação: maloqueiros- os que residem nas malocas.

[5]  Dados sobre populações de rua, suas ações, notícias culturais podem ser encontradas nas revistas Ocas – saindo das ruas. Trata-se de um órgão midiático produzida por segmentos sociais de cunho político-militante, visto que, seus vendedores também compreendem pessoas em situação de rua, recebendo parte do lucro da venda dos exemplares, comercializando-as pelos passeios das metrópoles.

 

 

PUBLICADO NA REVISTA METRÓPOLE DE PORTUGAL.